Almas Mortas e O Inspetor Geral, de Gogol, constituiram dois marcos extraordinários na história da literatura russa. Ali, até o início do século XIX, as obras formadoras e dominantes da língua haviam sido as do poema e da épica, sobretudo as de Lomonossov e as de Puschkin. Com Gogol, a prosa adquiriu o status de arte e a realidade do país revelou-se, com o espanto de muitos, para além de sua aparente leveza de burla, um retrato amargo, impiedoso e grotesco da sociedade.
Por isso mesmo, a idéia central do romance, sugerida por Puschkin após a leitura de uma nota jornalística, permitiu a Gogol pintar brilhantemente uma enorme variedade de personagens, cuja força reside em seu poder de caracterizado do universal pelo específico, o que levou Puschkin a dizer, apesar de toda comicidade ali destilada: “eu não ri, chorei; Deus, como é triste a nossa Russia”. Assim, a denominação “almas mortas” constitui não apenas a metafora de um golpe ou de uma prática ardilosa no regime czarista, mas ainda uma expressão de até onde pode ir o decaimento do espírito humano, a contradição em que ele pode entrar com todo o padrão ético e fundamento religioso da existência. Este duplo retrato é o que certamente torna perene a obra, o riso “gogoliano” que, até hoje, chega ao leitor, não só em sua textualidade autoral, como no rastro que deixou na literatura de Turguêniev, Dostoiévski, Babel, na poesia e no teatro, o que representa, sem dúvida, o signo maior da visão e da força de linguagem deste escritor russo-ucraniano.