Em 1984, o ítalo-brasileiro Elio Gaspari, agraciado com uma bolsa de estudos na Wilson Center for International Scholars, desenvolvia um artigo sobre a ditadura brasileira, destacando a atuação dos generais Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva no processo; um ensaio cuja estimativa era alcançar a média máxima de 100 páginas. Conforme avançava nas pesquisas, percebeu que seria impossível manter tal número e imaginou um texto de maior fôlego, inicialmente, dividido em duas partes. Em 2002, o fruto de sua pesquisa chegava às livrarias em dois volumes lançados pela Companhia das Letras de um total de quatro que seriam lançados posteriormente.
Relançada pela Editora Intrínseca, As Ilusões Armadas e O Sacerdote e o Feiticeiro, uma quadrilogia formada por estes pares de nomes distintos (As Ilusões Armadas: A Ditadura Envergonhada e A Ditadura Escancarada, respectivamente volume 01 e 02 e O Sacerdote e o Feiticeiro: A Ditadura Derrotada e A Ditadura Encurralada, volume 03 e 04), é um denso e precioso documento narrativo que exibe em qualidade impecável boa parte dos 21 anos os quais o Brasil esteve sob regime da ditadura. Os quatro volumes formam um panorama geral desde os dias que antecederam o golpe, até 1977 e a demissão do general Sylvio Frota, ministro do Exército durante o governo Geisel. Os quatro volumes foram revistos pelo autor contendo um novo prefácio, fotos inéditas, eventuais correções da edição anterior e novos documentos revelados recentemente pelo Arquivo Nacional, como uma ata de julho de 1968 que apontava a intenção de decretar estado de sítio cinco meses antes do AI-5 e gravações que comprovavam que John F. Kennedy discutiu a possibilidade de uma ação militar no país contra o comunismo.
Utilizando o ensaio como narrativa, Gaspari mantém entrelaçado o desenvolvimento histórico ao mesmo tempo em que desenvolve uma voz literária para apresentar nossa história. A fluidez pela qual pontua os acontecimentos é pautada em sutilizas narrativas que fazem do texto um objeto além de um mero registro historiográfico, produzindo um ritmo fluído que nunca perde a fidelidade história e a voz autoral. Fundamentado por Michel de Montaigne e Francis Bacon, o ensaio é considerado a forma mais livre da literatura, pela ausência de formalidades obrigatórias para sua execução. Um espaço que permite o desenvolvimento de certa lírica ou narrativa sem que se perca a fidelidade da informação em seu conteúdo.
A pesquisa do autor é intensa, apoiando-se em uma literatura anterior de grandes livros sobre o tema, tanto de estudiosos, com biografias de homens que viveram sob o golpe, quanto de documentos oficiais do país, além de notas e diários íntimos que formam um panorama concreto destes acontecimentos, focando diversos polos diferentes. Além disso, o escritor desenvolveu uma pesquisa direta promovendo entrevistas com personagens centrais, como o general Geisel. Todo este longevo trabalho de pesquisa e fidelidade aos fatos resultou em um excelente livro de não-ficção que intenta ser uma voz definitiva de parte de nosso passado histórico.
Este primeiro volume abarca o espaço temporal antes do golpe, nas tensões que o presidente Jango Goulart causavam em parte da sociedade, e se encerra na composição do Ato Constitucional nº5. Um fato que, além de explicitar este momento como um ponto de transição da ditadura, promove um gancho narrativo para a segunda parte do ensaio. É brilhante a maneira pela qual o autor conduz este momento final, fazendo da fundamentação do AI-5, no capítulo A Missa Negra, um registro de conflito interno do governo sem perder a vertente narrativa. Gaspari se baseou na transcrição da reunião feita pelo governo, tanto a escrita quanto a sua gravação, para criar uma ambientação que insere o leitor na cena, mostrando as discrepâncias do governo Costa e Silva sem nenhum julgamento, entregando ao leitor os fatos e evidenciando que, neste caso, a verdade dos acontecimentos é mais forte do que qualquer composição literária.
A obra observa em seu todo tanto o movimento militar quanto os levantes contra o regime, reconfigurando uma difícil linha histórica em um relato coerente que ilumina o período. Não à toa, recebeu o Prêmio Ensaio, Crítica e História Literária de 2003 da Academia Brasileira de Letras, em 2003, e se mantém como uma narrativa brilhante e bem equilibrada entre os aberrantes fatos históricos do país e uma voz talentosa para narrar tais acontecimentos.